Um teatro em chamas

Francisco Kliemann a Campis, Janriê Rodrigues Reck

Resumo


Lewis Caroll, no livro Alice através do Espelho introduz um caricato personagem chamado Humpty Dumpty¹ que dá às palavras e aos fatos o sentido que quer. Humpty Dumpty diz para Alice que é melhor que haja 364 dias destinados ao recebimento de presentes — que são os desaniversários — e somente um de aniversário. É a glória para você, aduz Humpty, pois poderá receber, em vez de um, 364 presentes. Para o que Alice responde: mas isso não pode ser assim. E Humpty Dumpty complementa: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Como consta no livro, é o fim “demolidor” de uma discussão.

A “lacração” não está conectada apenas com o significado das palavras. A humanidade possui uma história de perseguição da verdade de pelo menos 2.600 anos. Este conhecimento acumulado acelerou-se com uma reflexão especializada sobre a verdade – a epistemologia – e o esclarecimento acerca dos prejuízos e vieses, método científico e paradigmas de conhecimento. Muito embora ainda persista a saudável dúvida sobre quais os melhores métodos, o conhecimento sobre os parâmetros mínimos é compartilhado por todos, desde cientistas matemáticos até cientistas sociais, passando, claro, pelas ciências biológicas/médicas. Princípios básicos como não-contradição, avaliação cega, reprodutibilidade dos experimentos, transparência, viés de retorno a normalidade, grupos controle e isolamento de variáveis são conceitos compartilhados por uma grande comunidade científica. Um cientista estatístico provavelmente não dominará o conhecimento sobre a reprodução de tubarões, mas seu conhecimento de método permitirá apontar os erros de método, os quais são compartilhados pela grande comunidade humana – o que aliás consiste em um grande patrimônio cognitivo, igual ou mais valioso que as grandes religiões, por exemplo.  

          A quem diga que Humpty Dumpty está errado, mas isso não significa nada, pois hoje em dia ele ganhou e ainda vêm ganhando vários adeptos de suas ideias. A lógica Humpty Dumpty – as palavras, os conhecimentos e os métodos são aquilo que o emitente quer que seja por viés pessoal – espalha-se por todos os campos. Da política à economia e, como é a grande preocupação, à medicina. O mundo como expressão de desejos egóicos infantis em sua projeção na medicina é especialmente delicado pela óbvia razão que a vida biológica é posta em risco. Assoma-se o juramento de Hipócrates, o qual adiciona um elemento ético à busca da verdade e o repúdio aos vieses infantis e mitológicos. Infelizmente a lógica individualista, ressentida e infantilóide que circula na sociedade também se refletiu em parcela da comunidade médica. Este segmento socialmente variado propõe remédios cuja ineficácia já foi demonstrada² por dezenas de pesquisas dos mais sérios institutos. Experiências individuais sem nenhum controle ou método, são indicadas para o tratamento para um vírus que já matou 185.000³ pessoas só no Brasil. Tanto o cidadão analfabeto, como o empresário de sucesso, como o servidor público de alto escalão e finalmente o médico da ponta compartilham os mesmos grupos de redes sociais onde seus egos são massageados reciprocamente, suas teorias da conspiração confirmadas e seu amor pelo mito gozado e realizado. Estimulam reciprocamente sua lógica individualista e de desprezo dos métodos, validam o não uso das máscaras, os boatos sobre a vacina, menosprezam os resultados do lockdown e caem em armadilhas científicas das mais simples, a saber, algumas:

- consideram que remédios geram efeito sem vincular ao mecanismo do retorno à média, ou seja, que mesmo pacientes não-tratados serão curados em algum percentual;

- que experimentos científicos precisam de isolamento de variáveis, de modo que o achismo de consultório não se compara ao laboratório;

- que a eficácia de qualquer remédio precisa de amostras altas, e não um ou dois casos ocorridos ao acaso;

- que, dado o retorno a média, somente com grupos controle (grupos que recebem remédios e grupos que recebem placebo) numerosos podem comprovar a eficácia de algum remédio.

- que os experimentos científicos devem publicados e principalmente capazes de reprodutibilidade.

Estes postulados científicos básicos são compartilhados por toda a comunidade. Um cientista da economia poderia acusar um grupo de médicos de não ter seguido o método, mesmo que não tenha conhecimentos específicos da Medicina – já que o básico da ciência é um presente para todos os seres humanos instruídos.

Claro que a cegueira ante estas armadilhas que praticamente brilham como luzes de natal só é possível a partir de um forte viés ideológico e de tentativa de validação tanto do ego como dos mitos nos quais acreditam.

O filosofo e lógico Bertrand Russell⁴, dizia que combater o medo deve ser uma das preocupações primordiais daqueles dotados de postura cientifica, pois o medo é como uma paixão irracional, e não como previsão racional de possíveis infortúnios. Para Russell, quando um teatro é tomado por um incêndio, o homem racional prevê o desastre tão claramente quanto o homem tomado de pânico, mas adota métodos prováveis de reduzir o desastre, ao passo que o homem tomada de pânico o agrava.

O Brasil em meio a pandemia é como uma audiência tomada de pânico, em meio a um teatro em chamas, necessita-se de calma, de instruções peremptórias quanto à maneira de nos salvarmos do fogo, sem que nesse processo nos despedacemos pisoteando uns aos outros. Mas enquanto epidemiologistas, cientistas, sociólogos e jornalistas tentam nos alertar quanto à necessidade de organização diante do perigo, nossos humpty dumptys ecoam suas vozes, hora para falar que o teatro não está pegando fogo, hora para falar que o fogo só atinge maricas e hora  para falar que a organização feita pelos cientistas serve apenas aumentar as mortes pelo fogo (isso quando não estão dizendo que o chinês ao fundo da sala foi quem colocou fogo no teatro e que a porta de emergência que ele abriu é na verdade uma saída para um fogo ainda mais quente).

Por mais difícil que seja, aqueles preocupados com ter uma atitude crítica diante de um incêndio devem fazer como Alice e explicarem que os fatos são outros e que estes fatos não podem ser constituídos por uma mera convicção pessoal sem qualquer embasamento.

Se a nossa sociedade⁵ chegou no estágio de evolução que temos hoje, em que ouve uma enorme redução da mortalidade infantil, do contágio por doenças, um enorme aumento da longevidade e uma melhora substancial em todos os aspectos da qualidade vida isso se deve à razão humana. Razão esta que é inerente ao ser humano, que a usou para criar vacinas e tratamentos médicos, mas que desde sempre vive em conflito com outras facetas da nossa natureza como o acato à autoridade, o pensamento mágico e a atribuição de infortúnio a elementos malfazejos.

Se existiu algo que Galileu Galilei, Charles Darwin, Edward Jenner, Oswaldo Cruz e Alexander Fleming tiveram em comum foi a exigência de que se aplicasse vigorosamente o critério da razão para entender o mundo, em vez de recorrer a geradores de ilusão como a fé, o dogma a revelação, a autoridade, o carisma, o misticismo, o profetismo, as visões, as instituições ou a análise interpretativa de texto sagrados. E sabemos que o número de vidas salvos por suas descobertas é inestimável.

Palavras-chave: Covid-19. Ciência. Democracia. Epistemologia.

 

 

 

 

 

 

Referências:

1. Caroll, L. Alice através do espelho. Zahar: São Paulo, 2020

2. Sociedade Brasileira de infectologia. Resposta ao Ofício nº 5422/2020/MPF/PRGO/3ºONTC. São Paulo, 2020

3. Folha de São Paulo. Com média móvel de óbitos crescente, Brasil ultrapassa 185 mil mortes pela Covid-19. São Paulo, 2020. Dísponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/12/com-media-movel-de-obitos-crescente-brasil-ultrapassa-185-mil-mortes-pela-covid-19.shtml>. Acesso em: 20 dez 2020.

4. Russell, B. No que eu acredito. Porto Alegre: LePM, 2017

5. Pinker, S.  O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo. Tradução de Laura Teixeira Motta e Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.


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